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  A ALEGRIA DE UM COROA

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Rio de Janeiro/RJ

Garrincha


Em 18/05/2020 às 16:32


A ALEGRIA DE UM COROA
Armando Nogueira

(Texto extraído do livro "O Vôo das Gazelas", de Armando Nogueira, publicado em 1991)

Acordou bem cedinho. Estava louco para rever a sua cidade.
Abriu a janela do apartamento e deu de cara com uma colossal manhã de sol, dessas que só mesmo o Rio de Janeiro é capaz de aprontar em pleno inverno. Pois a história que agora te conto, leitor, passou-se no recente mês de agosto.

Para não perder tempo, que as férias eram brevíssimas, o nosso amigo tomou um xicrinha de café preto, enfiou no bolso uma pera, pra mais tarde, e saiu pelo Aterro do Flamengo, feliz da vida, de bermudas e tênis "Conga".

Caminhava e distribuía seu contentamento entre as árvores do Aterro, boas amigas que ele já não via há dez anos, quando deixou o Rio para ir cuidar de uma fazendola no interior de Minas.

Pelas tantas, quis tomar sol. Despiu a camisa de malha, deitou na arquibancada do campinho de futebol de salão e assim ficou um tempão, entregue ao regozijo de merecido repouso.T amanho era o sossego que até chegou a tirar uma soneca.

- Ei, moço! bom-dia! Era a voz de um dos três garotos que chegavam com uma indisfarçável secura de bola.

- Quer fazer um racha com a gente? A gente joga dois-contra-dois. Deitado estava e deitado respondeu, no embalo: - Vamos lá, pelada é comigo mesmo! Resoluto, levantou-se, sacudiu as pernas e foi logo entrando no
campo. Um campo de barro.

O dono da bola, um menino de seus quinze anos, fez a apresentação da turma: - Eu sou o Marcio, esse aí é o Dico e aquele é o Leo. Nem esperou que o coroa se identificasse. Queria mais era começar logo o racha.
- Olha aqui, vai ser eu e o Dico contra o senhor e o Leo.

Pela rapidez da escalação, o coroa sentiu que devia estar entrando numa fria: o bom de bola, ali, devia ser o Dico.

Discretamente, deu uma olhada e viu que o Leo não tinha a menor pinta. De qualquer modo, chamou de lado o Leo e propôs uma chave: o Leo lá na frente, ele mais atrás.

Antes, porém, um teste sem aparentar outra intenção a não ser
aquecer o corpo: na verdade, queria mesmo era saber se o Leo era de bola ou não.Tocou a bola na direção do Leo para ver que bicho dava.

A bola beliscou a canela do Leo. O coroa chegou a pensar em desistir. Um sujeito de 61 anos, meio barrigudo, cheio de cabelos brancos:
- Meu Deus, o que é que estou fazendo aqui no meio desses
meninos; uns meninões de quinze anos?

O diabo é que ele já tinha aceito o desafio. Não ficava bem correr da raia. Afinal de contas, não era a primeira, nem seria a última vez que a vida metia o nosso coroa em batalhas decisivas.

No meio do campo, o dono da bola vai cantando as regras do jogo: a partida é de cinco. Quem fizer cinco primeiro, ganha. Não vale gol direto. Não pode pegar a bola com a mão, só se já começar no gol de saída.

E como ninguém sequer pensou em jogar no gol, a partida
começa com os quatro na linha. No centro do campo de terra
batida, a bola de futebol de salão, por sinal que um tanto surrada.

A saída, lógico, é do Marcio. Marcio pro Dico, Dico pro Marcio, que tenta um drible. O coroa, vigilante, rouba a bola e contra-ataca. Procura o Leo. O Leo ficou lá atrás, paradão, sem saber pra que lado ir. O coroa então chuta do meio do campo. Gol!

- Não vale - grita o Marcio - eu avisei ao senhor que não vale gol direto.O senhor tem que passar a bola pro Leo! Ou o Leo pro senhor!

Gol anulado, começa tudo de novo. Saída com o Marcio. O
coroa pede tempo. Cochicha uma tática no ouvido do Leo.
Bola em jogo. O Leo dispara e vai ficar plantado bem juntinho da baliza, como pediu o coroa.

Em dez minutos, o time do coroa já está ganhando de três a
zero, três gols do Leo. O esquema funciona bem, mas o jogo é incessante, lá e cá.Agora mesmo, o Dico acaba de fazer o dele: três a um. E o Marcio delira com a reação.

Nova saída. O coroa arranca pelo meio dos dois, parece um
foguete; vai em frente e entrega, mais uma vez, em baixo dos paus para o Leo fazer o quarto gol.

A essa altura, o coroa já passeia pelo campo, absoluto. Por sua vez, o time adversário já esta literalmente descadeirado.

- Vai - pereba, berra o Marcio, colérico, para o Dico - Vai nele! Você não disse que o coroa não é de nada? Toma a bola dele, palhaço!

A dissensão nas hostes inimigas é profunda. O Marcio e o Dico vão acabar saindo na porrada. Pelo menos é o que pressente o coroa, achando, por isso, que o melhor é liquidar logo essa conta.

Vamos, então, mais que depressa ao quinto e derradeiro gol
dessa inesquecível partida. Porque inesquecível, leitor, já, já saberemos.

O Marcio faz um passe longo para o Dico. O demônio do
coroa, como sempre, advinha a jogada, corta o centro com o peito em pleno ar e, antes que a bola caia no chão, amortece na coxa direita. Da coxa, a bola escorre para o peito do pé e pronto: uma, duas, três... o homem começa uma sucessão de embaixadas; faz nove em plena corrida. Na décima, depõe a bola na linha do gol, bem em cima da linha:
- Tai, Leo, faz o quinto e acaba logo o jogo.

O Marcio, uma fera, vai apanhar a bola e nem volta para dizer até logo. O Dico sai de fininho, mal dá um tchau. O Leo, não, o Leo dá um abraço legal no companheiro de time.

O coroa senta de novo na arquibancada, tira do bolso a pera, dá uma mordida triunfal e fica ruminando, em silêncio, o bendito fruto de uma bela vitória.

Os três meninos foram embora sem saber que deram uma
certa alegria ao coroa Nilton Santos, também chamado "A
Enciclopédia do Futebol"

camisa_7

Desde 05/2016 • 7 anos de CANAL
AC

Garrincha


Em 18/05/2020 às 18:21
 

Já  tinha lido, relido e  lido outra vez esse texto, porém jamais me canso dele!! Muito bom!! Aproveitei a oportunidade para ler de novo!! Valeu, Elramo!

elramo

Desde o início • 17+ anos de CANAL
Rio de Janeiro/RJ

Garrincha


Em 18/05/2020 às 18:51
 

Belo texto. Dois craques: o Armando Nogueira e Nilton Santos...

 
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