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  A PROFESSORA BOTAFOGUENSE E O CAVALEIRO FLAMENGUISTA

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Goiânia/GO

Garrincha


Em 05/03/2021 às 10:13

A PROFESSORA BOTAFOGUENSE E O CAVALEIRO FLAMENGUISTA

De duas, uma: ou o Bairro Feirinha era, de fato, o mais alegre da cidade, ou, então, sem dúvida alguma, nos meus tempos de criança pálida e barriguda, o lugar constituía-se num verdadeiro paraíso de acontecimentos.

Digo isso porque, ali, entre as ruas Novo Cruzeiro e Viçosa – onde passei a maior parte da minha tenra idade, acontecia de tudo: a vendinha do seu Esterlino, com a sua caderneta de fiados, homem alto, de pele avermelhada, sempre a aumentar as contas alusivas aos pães de sal que nos matava a fome; um cachorro chamado Sereno, pé duro, vira-latas de pelos amarelo claro, capaz de meter medo na criançada, ao ponto de fazer guris subirem barrancos e saltar cercas, quando o cão feroz via-se solto, sem “boqueira”; menino metido a Prefeito Mirim, a construir casinhas de tijolos furtados da construção de uma “igreja de crentes” que ali se edificava (“não sei quem fui, só sei que se chamava Nicanor”); meninotes e meninas dançando cirandas em noites enluaradas; mocinhas passando “anelim bem guardadim” entre as mãos em fase de puberdade, nas noites escuras.

Tinha de tudo um pouco: brincadeiras de pique, carrinhos de quatro rodas a descer ladeiras, virgem que perdeu a virgindade, pastores a iluminar a escuridão, de segunda a sexta-feira, com lampião a gás, descendo a ladeira do Bairro Vila Nova, rumo aos cultos da Igreja Pentecostal; bumba meu boi, moças vestidas de “Pastorinhas”, com suas lanternas alaranjadas em suas exibições folclóricas e, até (como esquecer?), um garoto negro, de nome Fidelcino, contador de lorotas, risonho, mas exímio equilibrista em pernas-de-pau...

Garotos que matavam pombos que assentavam no quintal da mercearia do seu Zé da Banha, por mero deleite; lençóis quarados com pedrinhas de Anil, estendidos em lajedos, num branco de doer as vistas; avenida de casas de parede-meia, quiosques, mulheres da vida denunciadas por “mães de famílias mal amadas e mal trepadas” ao Tenente Machadinho, um crápula de bigode largo e tudo o mais.

E foi nesse cenário delirante, entre os meus dez e quatorze anos de idade, que conheci aquela a quem todos rotulava de “professora cheia de predicados”, uma moça linda, morena, cabelos longos de um negrume capaz de causar inveja a qualquer betume. A mestra, que lecionava no Grupo Escolar Governador Bias Fortes, além dos seus dotes por todos reconhecidos, era, acima de tudo, recatada, séria, de poucos sorrisos.

Tinha sobrancelhas grossas, porém arqueadas. Lábios carnudos, róseos, ao estilo Brigite Bardot. Não era alta, mas também não era baixa. Talvez não mais que metro e sessenta e cinco, por aí. Era, portanto, moça de muitos predicados.

Mas, o seu maior gabarito advinha do fato de ser conhecida na cidade como “a professora botafoguense”, em razão de não largar da lapela o escudo do time para o qual torcia – algo incomum nos anos sessenta, principalmente em cidades interioranas, em que o normal, o usual, o corriqueiro era que as “moças prendadas” não envolvessem com “coisas de homens”, mas apenas com atividades tipicamente femininas: corte e costura, arte culinária, datilografia, magistério...

Filha de pai botafoguense que desencaminhou os filhos a seguirem a mesma sina alvinegra sofredora, desde quando frequentara um colégio administrado por freiras (internato onde a presença de alunos de sexo masculino era vedada), a “normalista”, talvez por temor reverencial, quiçá em razão de idolatria paterna, já gostava de ser identificada como “a professorinha alvinegra”.  

Depois que “tirou o Diploma do Curso Normal”, abandonou o internato sediado no alto de um morro e passou a lecionar em escolas públicas municipais. Era exímia na arte de lecionar e querida por todos os seus discípulos. Tamanha simpatia chegava ao ponto de, quando o sino tocava, os rapazes fazerem fila na porta do colégio, para disputar, a tapas, quem seria o “premiado” a ser escolhido por ela para carregar os seus apetrechos, livros, caixa de giz, régua e diários de classe, até a porta da sua casa. Uma beleza ver-se aquela roda de garotos paparicando-a, apenas para receber um “obrigada” e um “até amanhã”, ao despedir-se dos felizardos.

Além de bonita, possuía estirpe: dons de rainha britânica – decerto, herança genealógica decorrente de um pai que tinha nome de reis: CARLOS (que, fazendo uso de um acróstico singelo, significava, simplesmente: “C” = Cristo, Rei dos reis; “A” = águia, rei dos pássaros; “R” = rosa, rainha das flores; “L” – de Leão, rei dos animais; “O” = rei dos metais e; “S” = rei do universo). Homem sério e temente a Deus, mas valente:

- “Ai de quem ousar tocar, sequer, num fiozinho de cabelo da minha filha” – vivia a repetir aquele senhor simpático, dado a realizar cavalgadas nos desfiles de 7 de setembro, marchando em seu alazão paramentado, empunhando a Bandeira do Brasil, na primeira fila dos cavaleiros que marchavam atrás dos alunos do Ginásio Santo Antonio da minha Nanuque calva.

A quando e quando, aos finais de tarde, a professora botafoguense aparecia na janela da sua residência, uma casa caiada, com duas janelas de madeira pintadas a Sherwin-Williams, marca duma empresa fundada em 1866 que cresceu não apenas nos Estados Unidos, mas no mundo todo, inclusive na minha terra natal (quem diria!), em razão da qualidade das suas tintas a óleo, preferidas para dar coberturas em portas e janelas confeccionadas pela multinacional Bralanda – a mesma madeireira que extinguiu a Mata Atlântica que existiu na região do Vale do Mucuri.

Nem mesmo quando o meu padrinho, Pedro Ferreiro, seu vizinho, num dado mês de agosto, subiu à cerca do quintal para matar, a disparos de calibre vinte e dois, um cachorro louco, apavorou-se. Continuou altiva, elegante. Não deu um pio, nada comentou. Tampouco era dada a frequentar as “horas dançantes” movidas a picapes nas casas dos vizinhos de bairro – pecado imperdoável numa época movida a “beatlemania”.

Ao que se sabe, afora o broche com o escudo da estrela solitária que adornava suas vestimentas, era vista assim: seu nome era “trabalho” e o apelido, “faina”, ou seja, do trabalho para casa, e do lar ao labor, dia após dia...

Somente um acontecimento a tirava do sério. Refiro-me às sucessivas (e tragicômicas) tentativas empreendidas por um “cavaleiro rubro-negro”, quem, vestindo-se ao estilo “Durango Kid”, misturado com “Rock Lane” (personagens famosos dos filmes exibidos nas telas das matinês do extinto Cine Serrano, aos domingos), religiosamente, todas as tardes, por volta das 17 horas, punha-se a empinar o seu cavalo, esporando-o para, ora trotar, ora empinar, ao estalar do chicote, chamar sua atenção:

- “Êeeeeiiiaaaa! Aiôooo, Barão!” – gritava, no mais das vezes, imitando o Zorro, sentindo-se lindo para aquela lindeza de mulher.

E ela, a professora recatada, nem pitico, nem pitaco. Apenas desviava o olhar, com classe é verdade, mas em sinal de desdém.

No dia seguinte, e no dias que se seguiam aos anteriores, a mesma cena:

- “Êeeeeiiiaaaa! Aiôooo, Barão!”

Ante aquelas pataquadas, presepadas levadas pelo chato cowboy, que além de flamenguista, era insistente.

Apesar do tempo e da idade, parece que foi ontem: ainda ouço a voz da minha saudosa mãe (que Deus a tenha!) repetir, em voz alta e em bom tom:

- “Ora mais já visse! Num tá veno que uma fêssora de família botafoguense num é forma pra esse flamenguista mal ajambrado!?”

Profecia ou praga, o fato é que a minha mãe “acertou na mosca”: Decorridos mais de quarenta anos, ao retornar à terra onde nasci, fui ao seu encontro. Ainda mora na mesma casa caiada – agora ampliada e com nova estrutura. Continua educada, fina, querida por todos no lugar. E o melhor de tudo: não se casou com o exibido cavaleiro torcedor do time da Gávea.

Afinal, nenhum alvinegro, gente “de classe” como dizia a minha progenitora, merece tamanha desgracença”

- “Pocotó... pocotó... pocotó... pocotó...”

 
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