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  JOSÉ DE JESUS: UM VASCAÍNO “ARRETADO”

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Goiânia/GO

Garrincha


Em 03/03/2021 às 23:55

JOSÉ DE JESUS:  UM VASCAÍNO “ARRETADO”

Filho de ferroviário da antiga “Estrada de Ferro Bahia e Minas”, residia (com a sua mãe Domingas, uma senhora tímida de quem quase não se ouvia a voz, juntamente com os irmãos Tião, Bill, Josina, Maria e o caçulinha de ano e meses, Domingos) num casebre de paus fincados, coberto com telhado de zinco, situado onde os trens de ferro faziam a curva, no antigo Bairro Viramundos.

Sempre alegre, ora corria, ora andava apressado. Quando os passos se alongavam, os ombros largos balançavam que nem folhas ao vento, da esquerda para a direita e desta para aquela direção. De voz retumbante, longa, tônica e a emitir sons predominantemente prosódicos, costumava imitar a realização de shows com artistas consagrados da época da “Jovem Guarda” – prática que fazia com esmero em cima dos galhos retorcidos de um velho pé de goiabas que existia ao lado da nova e ampla casa de madeira, construída em sistema de mutirão por amigos, antes de o seu pai “partir desta para melhor”.

De pele negra, possuía lábios protuberantes e rosados, boca grande e dentes alvos. Quando sorria (e estava sempre a dar gargalhadas gostosas), fácil era perceber que a sua dentição era do tipo cerrada, com nenhum canino à mostra. Não tinha orelhas de abano. Tinha nariz achatado, cabelos de carapinha, sempre despenteados.

Foi com ele que, desde cedo, aprendi que negros não têm cabelos ruins:

- “O meu cabelo é bão! Bão pra mim. O seu cabelo é seu e por isso é bão procê. Meu pixaim é bão: num matô ninguém, nunca bateu em ninhum minino e nunca martratô ser vivente de quatro patas e nem que avoa. Palavra de meu pai”.

Recordo-me, numa certa manhã de setembro, fora apanhado no recreio do Grupo Escolar Américo Machado pela sua professora Janete. Levados os dois brigões à sala da Diretora, Sani Lima, saiu-se com essa:

- “Dei porrada ness flamengueiro mezz, fessôra! Ele mi chamô di filho di escravo e amigo de botafoguense. E minha mãe mi insinô qui num inxiste iscravos machos e nem iscravos fêmas qui se acasalam pra nascer iscravinhos! Mi diz tomém qui nois veve pra dá as proteção nus amigos.” Referia-se a mim, que a quando e quando apanhava na escola.

Tal era o meu amigo “Zé Corró” (apelido que lhe atribuí de forma carinhosa e que “pegou que nem visgo” no bairro onde vivíamos felizes): nem dançarino, nem corredor de maratona, mas bom jogador de futebol desde o útero de sua mãe. De bobo não tinha nem o andado. Quando errava um passe no campo de jogo dizia que era porque não sabia - e não por ser “coisa de preto”.

Decorridos alguns anos do passamento do seu pai, a família recebeu boa notícia: o extinto deixara um seguro de vida para a sua prole. Da noite para o dia, tudo mudou: o Bill, flamenguista que era um craque e jogava de ponta esquerda no meu time de futebol, “Guarani”, num campinho que divisava o quintal da sua casa (atual Feira Coberta, ao lado do Colégio Stalin Romano), comprou uma bola de couro nº 5, construiu traves e redes de cordões, onde, na condição de “dono da bola e do campo”, escolhia com quem jogava; Tião, tricolor de coração e frequentador da residência do Sr. Hamílton Pinheiro, passou a andar com um radinho de pilhas vermelho (adquirido à vista nas Lojas Minaslar), altivo, escutando notícias e transmissão dos jogos do seu Fluminense; Josina carregava a Maria escanchada na cintura, com uma boneca “Dorminhoca” sempre à mostra...

Maldito dia! Perdi o meu amigo “Zé Corró”. É que, desde então, quando algum gaiato cabeludo o chamava pelo alcunha, retrucava, com cara enfezada, de poucos amigos:

- “Meu nome é José de Jesus!”

Noutra ocasião, vendo-o bem vistoso, usando roupas coloridas, camisas floridas de seda e sapatos lustrosos, dona Cleusa Pinheiro (comadre da sua mãe e sempre brincalhona), indagou-lhe porque usava aquelas “roupas berrantes” e a resposta saiu cristalina:

- “Uai, dona Creusa, num inxiste roupa di preto e nem tomém roupa di branco; é tudo roupa!”

Sinto uma saudade imensa daquele rapazola que vivia a ensinar a quem mais o ouvisse que negros podem se vestir do jeito que quiserem e que esse negócio de usar roupas sem cor como seus ancestrais não passa de estereótipos.

Saudade doída daquele “vascaiano” (como se referia ao tipo de torcedor do Vasco da Gama) que não era descendente de escravos; não tinha que saber sambar, dançar, e nem ser veloz, exímio corredor; não tinha cabelo ruim; que usava roupas coloridas, tinha uma inseparável cachorra vira-latas chamada “Bolinha” e gostava mesmo era de curtir músicas do Nilton César – um cantor mineiro de Ituiutaba que foi sucesso na década de 1970 com “A Namorada que Sonhei”, canção que vendeu mais de 500 mil cópias e rendeu-lhe vários discos de ouro e troféus à época...

Que fim levou José de Jesus, meu amigo vascaíno, que imitava como ninguém o cantor popular?

-“Rrrrecêêêêba as flori qui lhi dôôôu... In cada flori um beijo mêêêêêêu...

 

elramo

Desde o início • 17+ anos de CANAL
Rio de Janeiro/RJ

Garrincha


Em 04/03/2021 às 12:22
 

A namorada que sonhei: 
 
 https://youtu.be/pv3nodauhu0?t=5


Nicanor Passos

Desde 09/2020 • 3 anos de CANAL
Goiânia/GO

Garrincha


Em 04/03/2021 às 12:39
 

elramo disse:
A namorada que sonhei: 
 
 https://youtu.be/pv3nodauhu0?t=5
Rapaz, acabei de clicar no link que vc me enviou e, confesso, meus olhos de encheram de lágrimas. Não pela canção, mas porque enxerguei, como se estive sendo projetada na tela do computador, a imagem do meu amigo, trepado em cima do velho pé de goiabas, cantando qual o Nilton César, com o Rrrrrrrrrrrrrreceba as flores que lhe dou....


 
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