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  O TREINADOR VASCAÍNO QUE NASCEU NA ÉPOCA ERRADA

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Goiânia/GO

Garrincha


Em 01/03/2021 às 21:45

O TREINADOR VASCAÍNO QUE NASCEU NA ÉPOCA ERRADA

A minha ideia ao escrever sobre aquele treinador de pele negra e de baixa estatura, de dentes alvos de doer as vistas e que, a exemplo do Quarentinha, o paraense que se tornou artilheiro no meu Botafogo, quase não sorria (embora fosse afável) de fino trato, a falar sempre manso com os seus comandados de chuteiras de couro preto e cadarços bem amarrados para não se soltarem quando a bola rolava nos campos carecas da minha Nanuque dos anos 60/70, nada tem a ver com saudosismo.

Longe disso, faço-o apenas para lembrar aos mais novos que ainda sou de um tempo em que, para ser treinador de futebol não havia necessidade de o "Professor" ter feito cursos de "Técnico de Futebol Profissional" na Universidade da CBF – como se exige hoje em dia.

Treinador (era assim que se chamava quem sabia "dar o recado" do lado de fora das quatro linhas, onde “o couro comia”) para ser tido como um bom técnico tinha que possuir sabedoria para lidar com tantos craques que existiam na cidade. Não tinha “staff” como se têm hoje em dia, mas formava craques “a dar com pau”.

Aliás, “craques” que eram “craques” mesmo, o meu bom e velho amigo conhecia só “pelo gingado”, pelo jeito de andar, pelo amarrar as chuteiras cravadas a pregos; pelo jeito com que “batiam na redonda”. Era exímio na arte de ensinar um cabeceio, um voleio, uma matada de bola no peito, fazendo-a deslizar colada ao corpo, tal como magistralmente o fazia o Nei Conceição do meu Botafogo.

E quando digo que o cara era um revelador de “craques”, refiro-me a talentos como 1) Inacinho - um jogador versátil, que já fazia como ninguém, já naquela época a atual função "pivô" e jogava tanto pela direita, quanto pela esquerda; 2. Pantera - o maior coringa que já vi jogar em toda a minha vida, que "batia um bolão" do gol à ponta esquerda; 3. Nogueirinha - um baixinho cabeludo invocado e veloz que jogava de ponta direita; 4. Jecy - zagueiro de apelido impublicável em razão do gênero masculino, que jogava de "beque central", magro e alto, sempre a dar porradas e bicudas em quem se atrevesse a rondar a sua área; 5 - Sidney (goleiro negro que, apesar da pouca estatura) possuía a mesma explosão do Jefferson que atuou no meu Botafogo e fazia "pontes milagrosas" debaixo das traves de madeira do antigo campo careca e encascalhado da A.A. Bueno e; 6. Cabecinha - o maior jogador de todos os tempos que estes meus olhos estrábicos já viram jogar em minha terra natal - não apenas pela elegância com que jogava, nem tampouco por não ser desses que tratam a bola por "Vossa Excelência" como fazem tantos atletas profissionais de hoje, mas por que seria, sem favor algum, o dono do meio de campo de qualquer time que disputa a série "A" do Campeonato Brasileiro.

Como nunca fui bom de bola, mas apaixonado por futebol, minha diversão predileta aos domingos era postar-me sobre as cercas de madeiras do velho campo do Bueno, para assistir o "treinador" a que me refiro "dar as instruções" aos seus atletas - seja antes da "pelota de couro cru" rolar; seja durante o início ou ao fim do apito.

Com ele na beira do campo era assim: Quando o ponteiro partia em disparada na direção do gol, ele, de pronto, gritava para o lateral:

- "Escora o Homem! Escora o Homem!"

Dito e feito, não tinha outro remédio: Correndo ombro a ombro, fatalmente o ponteiro se esvaía ao chão, quando não se estrumbicava ou dando com a cara na cerca rente à linha lateral pintada a cal sobre o chão vermelho eivado de cascalhos!

Bola cruzada na área?

- "Nada de marcar a bola, Jecy! Marque o Tonhão! Suba escorando o ombro dele, Pantera!" – gritava.

O fato é que, com um treinador que nascera à frente do seu tempo cronológico (fosse hoje, nesses tempos de tantos "Pofexôres" que nada entendem senão de marketing e de número$!), não havia time que lhe opusesse resistência em seus domínios.

Ao que me consta e segundo a vasta coleção de imagens antigas que ainda guardo num velho "Álbum de Fotos" para rememorar fatos históricos que presenciei na terra onde nasci, ele foi treinador da Associação Atlética Bueno, Cruzeiro E.C (do bairro da Reta), do Brasil F.C. (time também do Bairro da Reta, que, contraditoriamente, jogava com camisas vermelhas em plena ditadura militar), do Gontijo E.C. (criado pelo meu irmão Raimundo, um baixinho bom de bola, que jogava de cabeça sempre empinada e era o dono da camisa 5, na época), Nanuque F.C., Estrela E.C. e até, em atenção a um pedido da "Irmã Salete", na época, Diretora do Ginásio Stella Matutina e sua vizinha no bairro de mesmo nome, foi também treinador do time "Stella Matutina".

Hoje, ao cabo dos meus sessenta e seis, fico a imaginar como o futebol perdeu a graça. Como os clubes brasileiros viraram reféns daquilo que a mídia chama de patrocinador máster e não desenvolvem alternativas em campo, como faziam os clubes treinados por aquele mestre de ensinar novos talentos, quando se postava na beira do campo, com um apito de lata na mão, durante os treinamentos diários.

Como é enfadonho ver fotografias e vídeos postados na internet sobre treinamentos dos atuais times de futebol, com jogadores driblando cones e fazendo "rachões" - algo impensável num time treinado pelo bom e barrigudo treinador negro da minha terra, numa época em que convivíamos diariamente com a paixão que o futebol despertava em todo o Brasil, chegando ao ponto de sermos considerados um país de monocultura esportiva!

Mas, como não há bom sem defeitos, apesar de meu amigo, o velho treinador carregava dentro daquele peito largo um coração cruzmaltino. O infeliz sem sorte morria de amores pelo Vasco da Gama – numa época em que o Botafogo era, de fato e de direito, Glorioso.

Que fim levou Noé, o treinador que tornou-me numa espécie de consumidor de futebol durante os 365 dias do ano, e que, apesar de tamanho potencial, por ter nascido na época errada, ainda serve de espelho para narrar aos mais novos que, apesar do Tite, ainda não evoluímos?

Que fim levou o estilo do velho treinador de um tempo que já se foi, mas que poderia ser professor nesses tempos em que o futebol é movido a novas tecnologias, quando a bola rola, dá calo nas vistas de qualquer torcedor (botafoguense, ou não)?

elramo

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Rio de Janeiro/RJ

Garrincha


Em 02/03/2021 às 12:23
 

Maravilha! Passei a ser fã de suas pequenas pérolas...

 
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