Chegou o momento em que o futebol brasileiro, atarracado à estrutura da associação civil sem fins lucrativos desde os primórdios, volta a considerar o modelo que por aqui ficou conhecido como “clube-empresa” – na verdade, firma limitada ou sociedade anônima. Hoje cartolas e políticos se movimentam, nos bastidores, a fim de criar estímulos para que nossos clubes troquem a estrutura associativa pela empresarial. Sociedade e mercado precisam ficar atentos. No afã de salvar gigantes endividados como Botafogo, Fluminense e Vasco, surgiu gente poderosa com propostas um tanto quanto temerárias.
O homem que está à frente do projeto “clube-empresa” é Pedro Paulo (DEM-RJ), deputado federal que nas últimas eleições municipais cariocas tentou se eleger prefeito. Por trás dele também está, hoje, o botafoguense Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, um dos políticos brasileiros mais poderosos neste momento.
Pedro Paulo, deputado federal — Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Pedro Paulo e Maia não querem criar uma estrutura societária específica para o futebol, que coloque regras próprias para o mercado futebolístico. Em vez disso, os deputados entendem que clubes devem ser enquadrados nas estruturas já existentes – limitada ou sociedade anônima. Esta migração sempre foi possível sem que nenhuma alteração legislativa precisasse ser feita, mas a maioria dos dirigentes a acha desvantajosa por prever o pagamento de impostos dos quais, hoje, estão isentos. Os políticos pretendem convencê-los do contrário.
O GloboEsporte.com teve acesso a três documentos – uma apresentação do Projeto de Lei que Pedro Paulo pretende apresentar, a minuta com todos os artigos, e um anexo em que a equipe de advogados por trás do deputado defende as ideias apresentadas. Aqui passaremos pelos principais itens contidos no projeto “clube-empresa”, defendido pelos deputados, para entender quais as consequências das propostas no funcionamento do mercado do futebol brasileiro.
- Recuperação judicial
Tenhamos uma agremiação qualquer como exemplo para entender o mecanismo da recuperação judicial. Um clube que tenha acumulado dívidas impagáveis, acima do meio bilhão de reais, e que tenha travado as suas cotas de televisão com garantias de empréstimos tomados em bancos. Mesmo após acordos negociados com credores, com o Ato Trabalhista para ordenar os pagamentos de dívidas trabalhistas e com o Profut em vigor, para equacionar dívidas fiscais, bloqueios a penhoras surgem e estrangulam o fluxo de caixa no cotidiano.
Há muitos casos como o deste clube X no futebol brasileiro.
O deputado Pedro Paulo propõe resolver as décadas de má gestão deste clube com a recuperação judicial, mecanismo que empresas tradicionais podem recorrer para sair de crises financeiras. A recuperação judicial foi instituída para salvar companhias com relevância econômica e social, que empregam muita gente, mas que passam por crises momentâneas.
Caso dirigentes do clube X quisessem entrar em recuperação judicial, a sequência dos fatos seria mais ou menos a seguinte. A partir do momento em que o pedido de recuperação fosse apresentado e aceite por um juiz, este X estaria livre de quaisquer cobranças por um período de 180 dias. Todas as suas dívidas deixariam de ser cobradas por seis meses para que o clube supostamente acumulasse caixa. Até a cota de televisão seria liberada da garantia em que foi concedida, a contragosto do banco. Cenário ideal para salvar qualquer um do rebaixamento.
"Deferido o processamento da recuperação judicial do clube-empresa, o juiz determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios", prevê o projeto de lei
Nesses seis meses, caberia aos dirigentes do clube X montar um Plano Global de Recuperação Judicial no qual precisaria dizer, detalhadamente, como pretende pagar as suas dívidas e em quanto tempo. Este plano só seria colocado em prática caso credores o aceitassem. Se não o fizessem, seria decretada a falência da empresa S/A ou Ltda e o clube fecharia.
Existem duas dezenas de possibilidades para fazer frente ao endividamento de uma empresa em recuperação judicial, mas, em geral, credores precisam aceitar um desconto considerável nos valores que exigem da empresa. O percentual varia. No caso da Editora Abril, hoje em recuperação judicial, há credores que abriram mão de 92% dos valores que tinham a receber para que o plano fosse aprovado.
Eis o primeiro problema do mercado futebolístico. Clubes de futebol têm torcedores, e não consumidores, como empresas convencionais. É natural esperar que haja enorme pressão social sobre credores para que eles aceitem tal plano, caso contrário seriam eles os “culpados” pela falência e o desaparecimento de um clube como o X.
É verdade que esses credores hoje têm pouca perspectiva de recebimento dos valores que lhes foram prometidos no passado. Haverá quem pense que é melhor receber apenas 10%, mas receber, do que aguardar por um dinheiro que talvez nunca chegará. Mas também haverá quem prefira continuar executando suas dívidas na Justiça até recebê-las, afinal a chance de o X deixar de existir, mesmo endividado, é remota. Qual será a margem para que essas pessoas recusem o plano de recuperação judicial diante de torcidas organizadas e aficionados?
"Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos sucedidos pelo clube-empresa existentes na data do pedido, ainda que não vencidos", estipula o projeto de lei
Há um segundo complicador. Ao mesmo tempo em que o X atravessou décadas sem nunca dar jeito em suas finanças, houve quem o fizesse. Flamengo, Palmeiras, Grêmio, Bahia, Ceará e Athletico-PR, todos esses clubes tiveram de encontrar meios para arcar integralmente com as suas dívidas. Eles pagaram ex-funcionários por meio de Atos Trabalhistas, renegociaram dívidas cíveis com os credores, aumentaram receitas, seguraram os custos, fizeram sacrifícios, até chegar ao momento em que estão, com investimento e competitividade.
O que dirão torcedores e dirigentes de clubes que passaram por apertos, mas se sacrificaram e trabalharam para sair deles, diante da indústria do calote que propõem Pedro Paulo e Maia?
E ainda há um terceiro fator potencialmente problemático. O texto proposto pelos deputados contém o seguinte artigo, válido para aqueles clubes que tiveram seus planos aprovados pelos credores.
"O clube-empresa, em regime de recuperação judicial, não poderá ser impedido de participar das competições oficiais organizadas por entidades de prática desportiva ou por entidades nacionais de administração do desporto.”
É possível que este dispositivo abra brecha para interferência judicial no futebol? O juiz responsável pela recuperação pode entender que, se o plano foi calculado levando em consideração as receitas de primeira divisão, o clube não poderá ser rebaixado para a segunda, caso contrário não terá dinheiro suficiente para atender às expectativas dos credores.
A regra sobre impedimento também abre brecha para desfazer eventuais punições da CBF por violações das regras do futebol. A entidade não poderá nunca aplicar sanções que excluam determinados clubes de suas competições, por descumprimento de licenciamento ou fair play financeiro, porque poderá ser desautorizada judicialmente.
Dentro do mecanismo para o qual o projeto dos deputados aponta, dívidas trabalhistas e cíveis serão resolvidas graças a um generoso perdão por parte dos credores – que, no futebol, indubitavelmente terão menos condições para recusá-lo. Instituições financeiras e empresários que tenham emprestado dinheiro perderão o investimento que fizeram no clube X – e este calote no mínimo parcial criará incertezas em todo o mercado financeiro perante o futebol.