Chama-se de jabuticaba, como metáfora, aquilo que só existe no Brasil. Injustiça. A fruta tem um gosto bom demais para a conotação negativa que ganhou noutros contextos. Como o que descrevo a seguir.
Vazou no Botafogo a carta que seu presidente, Durcesio Mello, escreveu aos integrantes da Mesa Diretora do Conselho Deliberativo. Nela, o cartola convoca uma reunião extraordinária para tratar da sociedade anônima, a S/A, e estabelece as condições mínimas para que o projeto avance politicamente dentro do clube.
A própria existência da carta aponta para uma situação tipicamente brasileira. Nos bastidores, existe uma disputa entre determinados botafoguenses para que se decida quem pode negociar o quê.
De um lado, está Gustavo Almeida Magalhães, economista que assina um novo projeto de Botafogo S/A junto com a Áureo Investimentos. Do outro lado, pessoas que não confiam nele para tal responsabilidade.
A reunião para deliberar sobre a S/A é um meio para conciliar divergentes. Gustavo provavelmente obterá a autorização para negociar em nome do Botafogo com investidores, mas ele não terá exclusividade sobre o projeto e terá um prazo de seis meses para encerrá-lo. Além disso, condições foram impostas para que o economista prossiga.
Por que dar a alguém tamanha responsabilidade, a de representar o clube numa possível "venda" envolvendo centenas de milhões de reais, sem que haja exclusividade? Amanhã ou depois, outra pessoa pode se habilitar a aparecer no mercado com outro projeto de S/A – mais um!
Gustavo tem o apoio do ex-presidente Carlos Eduardo Pereira e do ex-vice de marketing Ricardo Rotemberg. O plano, porém, recebeu críticas no Conselho Deliberativo. E o conflito transbordou para redes sociais.
O presidente vem sendo pressionado por detratores, acusado de atrasar a aprovação do projeto em andamento. O documento agora enviado foi a maneira que o dirigente encontrou para conciliar divergências. Ao tirar a exclusividade, Durcesio atende críticos de Gustavo. Ao mesmo tempo, dá a ele a chance de mostrar que cartas tem na manga.
Durcesio Mello, presidente do Botafogo — Foto: Vitor Silva/Botafogo
As jabuticabas
Entre as regras formalizadas por Durcesio Mello na carta ao Conselho Deliberativo, algumas são justificáveis e até óbvias.
Como demandar que haja uma captação entre R$ 400 milhões e R$ 550 milhões. Ou que 80% das dívidas trabalhistas e cíveis sejam refinanciadas, além do comprometimento em repassar um dinheiro, royalties, para que o Botafogo pegue o Ato Trabalhista e o Profut.
Garantias financeiras e solução para as dívidas são necessárias. Tanto para quem ficará "para trás" (os associados do Botafogo de Futebol e Regatas), quanto para quem administrará o futebol (os proprietários do Botafogo S/A, que não iriam querer operar uma empresa endividada).
A controvérsia está no que os redatores chamaram de "cláusula de performance". Regras que os futuros donos precisariam obedecer.
Diz o documento que o BFR (associação) deverá ter o direito de recomprar o futebol da S/A (empresa) por simbólico 1 real no caso de:
- Rebaixamento para a segunda divisão
- Não conquistar um título nacional ou internacional em dez anos
Botafogo S/A impõe "cláusula de performance" a futuros proprietários — Foto: Reprodução
Tratando-se sempre de Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores e Sul-Americana. O último título equivalente conquistado a um desses aconteceu em 1995. O anterior, em 1968. Em outras palavras, dirigentes amadores estão exigindo que a S/A ganhe a cada dez anos aquilo que eles mesmos, os amadores, não conseguiram em 50.
Esse tipo de exigência é incompatível com o que se pratica no resto do mundo. Quando um investidor (de qualquer natureza, com qualquer intenção) compra um clube de futebol na Europa ou nos Estados Unidos, ele compra um clube de futebol. Ponto final. Os antigos proprietários não têm ingerência sobre o ativo que venderam para terceiros.
Para não dizer que não há exceções, existem modelos em que a associação mantém ações privilegiadas na futura empresa – golden shares, por exemplo. Elas permitem que essa associação tenha poder de veto em determinados assuntos, como sede, cores e escudos. Para proteger tradições. Mas não permitem participação no negócio em si.
A exigência por performance esportiva é uma ideia que pode soar agradável, pois supostamente essas pessoas estariam defendendo os interesses do torcedor. Na prática, ela terá o efeito contrário.
Quando um investidor decide colocar o dinheiro dele em algum lugar, está preocupado com dois fatores: retorno e risco. Ou seja, quanto ele conseguirá em rendimento a partir da grana que investiu e qual chance ele terá de perdê-la (ou de não chegar ao rendimento esperado).
Clube de futebol é um negócio naturalmente arriscado. Pois envolve um mercado complexo, lotado de particularidades, que ainda por cima está sujeito às imprevisibilidades do esporte em si. Rebaixamento para a segunda divisão significa queda abrubta nas receitas. Eliminação precoce em mata-mata tira a chance de obter premiações altas. Esses problemas mundanos do futebol tornam incerto o retorno sobre o investimento.
Exigir que títulos nacionais e internacionais sejam conquistados faz com que esse risco se torne insustentável. Quem aportaria R$ 500 milhões num ativo que, se não ganhar campeonatos ou se for rebaixado à Série B, viraria pó e voltaria para as mãos do antigo dono por 1 real?
O problema dessa jabuticaba – com desculpas à pobre da fruta – é que a "boa intenção" acabará por prejudicar a instituição. O clube está na segunda divisão, tentando se recolocar na primeira, metido numa trágica crise financeira. Se investidores forem afastados por invencionices brasileiras, o que está em jogo é a sobrevivência do Botafogo.
As justificativas
Pessoas próximas do assunto, consultadas pelo blog, afirmam que a "cláusula de performance" foi incluída em todos os projetos de S/A. No piloto de Gustavo Almeida Magalhães, na tentativa dada como fracassada de Laércio Paiva e nas versões preliminares.
O intuito por trás da cláusula é evitar que o Botafogo vire um satélite de outro clube, estrangeiro e financeiramente maior. Seria um mecanismo para evitar que um proprietário use o futebol alvinegro apenas para revelar jogadores, exportar para outros mercados e ganhar dinheiro.
Também é possível, segundo essas pessoas, que as regras sejam afrouxadas para determinados investidores. Se o Manchester City aparecer com uma proposta, mas não quiser se sujeitar a demandas de natureza esportiva, negocia-se uma solução que viabilize o negócio.
O que nos leva à questão inicial deste texto: a formalização de regras para a sequência da S/A. Se essas exigências são negociáveis, por que colocá-las por escrito num documento a ser aprovado pelo Conselho?